quarta-feira, 29 de abril de 2020

Memórias



Vinte e nove de abril de 2020. Lá se vão 44 dias de distanciamento social, sem previsões para retorno à dita normalidade. Hoje, acordei sem saber ao certo que dia era, confusa no passar lento e ao mesmo tempo apressado e repetido das horas.

Eu sigo em casa, encontrando memórias que jaziam escondidas em lugares que nem sabia mais poder alcançar. Parte de nós é o que trazemos na memória. Somos as experiências que acumulamos, as relações, os momentos, as sensações e a maneira que nos lembramos e nos relacionamos com tudo isso. E muitas vezes nem nos damos conta do quanto carregamos. Mas de repente, no olhar despretensioso para o café fumegante na mesa, para uma rachadura na parede da casa, o escutar atento a uma palavra inusual, eis que ela está lá, a memória.

Hoje eu queria ver o rio. Deixar o pensamento, as memórias, os medos, a ansiedade seguirem o fluxo corredio das águas e se perderem pra não sei onde. Queria sentar ao lado do senhorzinho pescador de todo fim de tarde e assistir ao céu mudando de cor lentamente, do azul forte aos tons de rosa, laranja, amarelo, uma aquarela, até escurecer por completo.

Queria ver os passarinhos chegando pra dormir no concreto frio da ponte, barulhentos, algazarreando pertinho da água doce do rio, enquanto as pessoas passam apressadas preocupadas com a estética ou a saúde. Assim foi em tantos dias e não é mais há quase dois meses. Eu sinto tanta falta. E na falta vêm as memórias, insistentes, ocupando espaços.

Mais do que alcançá-las, reconhecê-las como parte de você, o mais difícil é ter que lidar com elas. Reviver situações que ainda perturbam de alguma maneira e perceber que no dia a dia não paramos tempo suficiente para nos dar conta disso. Não paramos o suficiente para nos perceber, nos ouvir e ouvir o tanto de vozes que falam por dentro, que gritam silenciosas. E se descobrindo, se redescobrindo, você deseja novamente se perder.