sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Eu não quero tolerância

Eu sou nordestina. Não preciso ser tolerada por causa de minha origem. “Nordestino”. A palavra que carrega em si uma carga histórica de sentimentos muito difíceis de serem diluídos, de serem sequer compreendidos. Em qual outra região do Brasil sua população é definida assim? Por que quem nasce em São Paulo ou no Rio de Janeiro não é chamado de “sudestino”? A palavra sequer aparece como correta no vocabulário do Word.

Eu sou baiana, nascida em Salvador, juazeirense de coração, remansense de raiz. Apenas um pedacinho do Nordeste, vastidão de povos, culturas, riquezas. E, com certeza, não preciso ser tolerada por causa disso.

“Lá no Nordeste é assim que funciona. O povo entrega o título de eleitor e votam por eles”. Ouvi isso de um taxista no Rio de Janeiro, recentemente, sobre as eleições presidenciais que se aproximam. Perplexa. Uma afirmação que poderia ser encaixada em alguma conversa do século XIX. Incrédula. Existem pessoas que realmente pensam assim.

“É verdade. Eu vi no jornal”, garantia o senhor de meia idade, pesado de conceitos pré-fabricados, dos quais ele não fazia qualquer questão de rever ou de reconsiderar. Triste. De fato, ainda existem pessoas que pensam que estamos estacionados no tempo, encurralados em um grande feudo com senhores da terra, atrasando o desenvolvimento do país. Seria isso o Nordeste para alguns.

E continuou. “Conheci um cearense branco, até bem apessoado. Tão branco, nem parecia cearense...”. Era realmente inacreditável. O senhor falava com uma naturalidade que espantava. Palavras atiradas com a visível intenção de atingir os quatro “nordestinos” que seguiam viagem em seu táxi. “Você precisa conhecer o Nordeste”, dissemos. Precisa, sim. Muitas pessoas deveriam tirar o antolhos e conhecer melhor seu país, saber mais de si mesmo e deixar de tanta arrogância. Seríamos melhores assim.

Tolerância. Segundo o dicionário é o termo que define o grau de aceitação de determinado elemento que contraria a regra. Não ouvimos mais o que viria da metralhadora sentada em frente ao volante. Não precisávamos, não temos que aceitar tanta ignorância, não temos que ser tolerados em nosso próprio país, em qualquer lugar que seja de seu território.


A bordo - relatos de uma viajante em início de estrada (Parte III) - Eu, depois de mim



Havia me perdido de mim. Entre os tantos caminhos que nos são ofertados ao longo da jornada, por vezes escolhemos o que nos desconstrói. Não como se reinventar, mas como nadar contra a maré. Eu, destemida, audaciosa, segura de minhas convicções, vi os adjetivos serem levados por uma corrente que não consegui acompanhar. E fui então percebendo a minha falta de habilidade com a vida real.

Há cerca de dez anos, em uma auto-entrevista, tracei um perfil do que seria, ou do que imaginava ser. Relendo, ainda identifico muito do eu daquele tempo em mim hoje. “Quero tudo ao mesmo tempo e ao mesmo tempo não quero tudo, quero só o suficiente pra me fazer sentir bem. (…) Prezo pelo lado simples da vida porque este já é complicado demais”. Naquela época eu não tinha ideia desse “complicado” e de como na maioria das vezes tornamos tudo mais difícil por não sabermos lidar com nossos próprios sentimentos, por não saber compreendê-los ou transformá-los em ação.

Eu ainda não sei. Mas adquiri certa consciência do quanto isso é importante e do quanto sair de si mesma e da imutabilidade de se ser ajuda a saber. Viajei. Conhecer o que se vê apenas em publicações ou nas imagens retorcidas da televisão nos dá uma dimensão do que somos, do que desejamos ser. Sentir lugares diferentes, pessoas com pensamentos tão diversos, ritmos, sons, cheiros, paisagens que não estão presentes em nosso cotidiano nos faz ter uma visão mais ampla de nós mesmos. Nunca voltamos igual, por menos perceptível que seja.

Ainda tento sair da contra-corrente. Ainda tenho a sensação de que nado sem sair do lugar, mesmo sabendo que aos poucos estou retomando o meu caminho. Desta vez sem tanta euforia e sem tanta pressa de me definir em palavras, de me precisar em propriedades, tamanho e peso, como uma embalagem de um produto qualquer. 


terça-feira, 26 de agosto de 2014

"Sim, o rio sabe"


Um dia ali foi caminho de barco. Água que passava correndo trazendo e levando notícias, deixando sentimentos. Um dia ali foi morada de peixe grande, que tornava ainda mais rica a vida de quem dele se alimentava.

Rio que em suas curvas desenhou estradas, encorajou o homem a fincar raízes, mostrou que viver era serpentear a sua liberdade por entre obstáculos e se lançar de peito aberto sobre o mar. Sempre corrente, vivo, soberano. Esse tempo não é distante, mas pode tornar-se apenas lembrança, cantada pela saudade e pela realidade que abate dia a dia o Velho Chico.

Há menos de um ano, o ponto mostrado pela fotografia acima era ancoradouro das barcas que fazem a travessia Juazeiro-Petrolina, hoje tomado pelas baronesas que se espalham rio a fora, sufocando, indicando que a sujeira humana aos poucos mata o que se tem de mais precioso.

Há cerca de cinco anos, o local onde se deu a tentativa de construção de uma estrutura para ancoragem das embarcações era coberto pela água, que, com as chuvas chegava a beirar a orla das cidades. Hoje, o volume do rio baixa diariamente, apequenando as possibilidades, apagando-se paradoxalmente para alimentar a energia elétrica.

O rio, em alguns lugares, já não canta. Explorado para além de sua capacidade, resiste, minguado, choroso, clamando para que o salvem de sua morte anunciada.     

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

E se fosse seu último dia? (Final)

Dei conta de mim depois de sabe-se lá quanto tempo. Não fazia mais sentido algum contá-lo. Algum dia fez? Pensei, pensei. Percebi o quanto era maniado em quantificar as coisas. Calorias, distâncias, inteligência, força, relações, desejos, vontades, amor, ódio, saudade. E o tanto que deixava de ver da vida enquanto colocava em números o que muitas vezes só é necessário sentir. E o tanto de humanidade que se perde em atos que vão se tornando mecânicos, mensuráveis.

Lembrei de certo dia quando voltava para casa. Sentado à espera do ônibus, vi pessoas caminhando. Pareciam ir a lugar algum, hipnotizadas pela pressa do dia que vai se acabando e ainda falta muito a fazer. Vi pessoas passando nas janelinhas dos coletivos. Olhares congelados, mirando o nada, sem brilho. O entardecer tentava chamar atenção, por entre os prédios da cidade. O céu mudando lentamente de cor e eu esperava o ônibus sem pensar. Assim como milhares de pessoas, que depois se espremeriam no espaço mínimo, cansadas do trabalho de dia inteiro, rezando para o motorista não parar no próximo ponto e abarrotar ainda mais de gente o momento que parecia eterno. Depois todos desceriam onde tinham que descer e seguiriam para fazer o que tinham de fazer.  

Vi que não somente eu poderia fazer do último dia o melhor dos dias. Vi que uma porção de gente não hesitaria diante da pergunta “você gostaria de mudar algo em sua vida?”. E mesmo assim permanece. Tive uma pequena ideia da multidão que diariamente reprime seus sonhos em nome de uma vida pragmática demais, burocrática demais, estática demais. Pessoas que deixam de ouvir a si mesmo, de ver além do que sempre é dito pra ser visto, que ignoram suas fantasias, por mais tolas que elas sejam, ou que aparentem ser. Pessoas que têm medo de transpor a ordem, de fazer diferente e que, ao se depararem com alguém com o pé fora do caminho, fazem de tudo para que as coisas voltem a ser como antes, para que não se perca as rédeas. Quem dita a ordem? Por que esta deve ser a ordem?

Nos primeiros momentos nos quais entendi que não poderia mais fazer nada para mudar meu destino, imutabilidade dada em vida pela minha inércia e já definitiva pela morte repentina, desejei ter feito diferente, lamentei pelos que ainda podem e não o fazem. Aqui, onde deixo de existir para tanta gente, sigo com as lembranças do que não fiz e do que poderia ter sido. Uma lição que aprendi tarde demais. 

E se fosse seu último dia (Parte I)

terça-feira, 29 de julho de 2014

"O que sente?"

Quem já não se deparou com os mal-estares da alma? E quem já não procurou ajuda para saná-los? Aquele homem não era só mais um, era alguém que precisava desabafar o que tanto lhe incomodava por dias a fio.

Interior de uma cidadezinha pequena já no nome. Seguiu as ruas de terra na esperança de o médico tirar-lhe as dúvidas. Espera impaciente pelo encontro que talvez mudasse a vida, passava o tempo lentamente contando as horas pelo sol que ficava cada vez mais alto.

“O senhor, por favor, venha por aqui”. Encontrava-se, depois de sabe lá quanto tempo, com a resposta para as suas perguntas mais viscerais.   

“O que sente?”, perguntou o médico, em seu ofício cotidiano de entrevistador.  

“Ó, doutor. É uma alegria que sobe e quando chega na cabeça só me vem o tempo de menino. E isso só acontece quando tem lua cheia, desde que um piolho de cobra picou meu dedão do pé”.

E o silêncio pairou pelo consultório, um ar risível no ambiente. E nada que a medicina mais moderna pudesse explicar, nada que os estudiosos mais renomados pudessem dizer.

“Se é alegria, melhor não mexer”, concluiu o médico no alto de sua sapiência. E o rapaz saiu de lá, satisfeito por seu problema ser o que tanta gente procura. 

quarta-feira, 23 de julho de 2014

O que foi...


Era apenas um corredor por onde passavam fantasmas,
por onde caminhavam as lembranças,
depois de adormecidas as saudades.
Eram as janelas entristecidas
por terem os olhos fechados para o tempo que veio,
com tons e cores que sequer foram vistos.
Eram os móveis empoeirados,
carregados de histórias não mais contadas,
ignorados em seus defeitos nunca reparados,
acumulando pela simples função de acumular.
Eram as portas fechadas para o mundo.
Era o mundo fechado em si mesmo.
Era a água interrompida,
a luz acostumada à escuridão.
Era o jardim somente um punhado de terra seca,
eram as paredes reflexos da solidão.
Era o entardecer febril,
de passos trôpegos pelo vazio.
Era o silêncio, apenas.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Não precisa dizer nada

Não precisa dizer nada, apenas ouvir. Tem tanta gente disposta a falar, procurando uma brecha no tempo alheio para colocar pra fora sua história. Pode ser apenas mais uma, mas é a vida de alguém. Por mais que não pareça, única.

Ela chegou discreta em meio ao vai e vem de pessoas que se amontoavam na agência bancária, indiferentes a tanto além do passar do tempo. Alta, magra, olhos pesados, mãos querendo falar. Olhou em volta rapidamente, sentou-se ao meu lado, a existência parecendo desafiar a vida.

- Não tem dinheiro nos caixas lá fora. – As mãos falavam esperando atenção. Assenti com a cabeça, tirei o fone do ouvido, o gesto que talvez esperasse.

- Ia tirar um dinheiro porque me enganaram. – Eu apenas ouvia, olhar fixo na transparência da córnea amarelada. Sobre a bolsa a senha que indicava atendimento prioritário.

- Estou com um tumor na cabeça, o médico me disse ontem. Vou ter que operar, mas preciso tomar um remédio antes. Custa setecentos reais. Vim tirar os mil que tenho na poupança.
A senhora, talvez nem tão senhora assim, parecia humilde. Se comportava com uma fragilidade de quem vai quebrar a qualquer momento.

- Tem três anos que eu sinto isso, mas o médico me dizia que era coisa da minha cabeça. Não uma coisa que existia dentro dela, mas uma coisa que ela criava. Fiquei esse tempo todo tomando remédios que acho que nunca deveria ter tomado.

Apesar de toda complacência nas palavras, tinha raiva na voz. E uma sobriedade tão forte, que parecia a impedir de sorrir. Ela não sorriu.

- Esses dias passei mal. Fui levar minha filha na UPA pra fazer um exame e desmaiei lá. Acho que foi porque comi muito pão com queijo cremoso. Por mim eu só comeria pão com queijo cremoso. (pausa longa) Eu disse ao médico que ele ia pagar pelo erro dele, disse que ia processar, porque o tumor tá grande e ele não tinha visto isso. Aí ele me disse pra levar a nota do remédio, acho que vai me reembolsar. Minha mãe me perguntou se eu não tinha medo dele me matar na mesa de cirurgia. E eu respondi, mãe, eu já estou morta.

A campainha soou. P34, era a sua senha. Pegou os mil reais, me mostrou que havia conseguido sacar e foi embora. Pela primeira vez sorriu, de canto, desajeitado como quem não tem costume. Talvez pensando no pão com queijo cremoso, felicidade de instante. Não, ela não estava morta. 

sexta-feira, 23 de maio de 2014

E se fosse seu último dia? (Parte I)

O que você faria se hoje fosse seu último dia de vida? Talvez não fosse a melhor maneira de relacionar-se com o mundo, sabendo que no dia seguinte você não fará mais parte dele, a não ser como pó, lembranças e, em alguns casos, saudades. Eu não sabia que ontem era meu último dia.

Acordei cedo, mais do que normalmente o fazia. Acho que a vida quis dispor a mim mais alguns minutos para que pudesse vê-la, mas não foi isso que eu entendi. Na verdade senti raiva, queria continuar dormindo, ainda me sentia cansado. Mas não consegui mais.

Levantei mal-humorado, fui ao banheiro, lavei o rosto. “Cara feia”, pensei olhando para o espelho. Poderia ter sorrido naquele momento, diante de um pensamento tão tosco e de uma imagem idem. Mas não sorri, do que me arrependo. Foi um sorriso a menos em minha vida. Segui levando no rosto um semblante pseudo-austero, rabugento, quase infeliz. Fui tomar café. Quando se pensa em morte e sabe-se que antes dela haverá um último momento, imagina-se que tudo nesse último momento será da melhor forma possível. Como em uma despedida de solteiro. Comigo não era diferente. Imaginei que minha última refeição matinal seria como naqueles filmes em que se baba frente à tv e que, em certos momentos, você jura poder sentir o gosto das iguarias. Tudo que achei foi um saco de pães dormidos. Poderia ter ido à padaria e comprar pães novos, ou ainda aqueles biscoitos refinados que há tempos paquerava no balcão, mas que, devido ao preço, nunca tive coragem de comprar. Eles pareciam muito bons de fato, mas não tive como constatar isso. Contentei-me com os pães duros e secos. Abri a geladeira e o que vi foi uma caixa de leite aberta, meia dúzia de laranjas já quase apodrecidas e água. Poderia ter feito um suco. Fiquei com preguiça e acabei comendo só aquilo que um dia tinha sido um pão.

Andei pela casa ainda sustentando no rosto a raiva de ter acordado cedo. Sentia-me o próprio Casmurro. Sentei na poltrona, fiquei horas sem fazer nada. Não percebi como estava o céu, se chovia ou se brilhava aquele sol costumeiro. Não senti cheiro algum, não ouvi música, não falei com ninguém. Acho que sequer pensei. Me anulei por um instante, mal sabendo que em poucos instantes estaria anulado para sempre.

Quando resolvi levantar e dar algum rumo àquele bendito dia, o relógio já marcava 10:37. Fui ao banheiro novamente, tomei um banho apressado. Pressa para que? Sentia-me importante quando tomava banho rápido. Parece que todas as pessoas importantes, que têm reuniões de negócios com outras pessoas que carregam maletas e por isso também são importantes, tomam banho rápido para chegar ao destino no horário. Eu não era importante, não tinha uma maleta nem horário marcado para reunião de negócios. Mas imaginava que um dia teria tudo isso e já ia treinando.

Saí do banho, vesti a roupa que vestia quase todos os dias. Uma calça jeans, a camisa amarela com um desenho que nunca entendi o que era na frente. Já estava até meio desbotada. Vi minha camisa nova balançando no cabide. Não cheguei a usá-la. Estava esperando uma ocasião especial, mas acho que esperei demais. Abri a porta resmungando porque ela emitia um ruído insuportável, um rangido que era quase uma canção brega. Poderia ter resolvido com um algodão banhado a óleo de cozinha. Mas acho que preferia perder meu tempo reclamando toda vez que a abrisse.

Andei pelas calçadas empunhando minha maleta imaginária, olhando para as pessoas com meu ar de superioridade que me afastava de uma grande maioria. Me sentia melhor do que os outros, por que haveria de esconder isso? Sou bonito e um dia serei um empresário de sucesso, era o que pensava quando via aquele povo feio que tinha a honra de dividir a calçada comigo. Quanta pretensão tola! Hoje sou pó, lembranças e nem sei se saudades. E eles continuam andando pela calçada, agora honrados sem a minha presença estúpida e prepotente.

O destino era a universidade. Cursava o sétimo período de administração de empresas. Queria fazer economia também, mas o tempo passou e eu não tive mais tempo. As aulas começavam 9h, mas geralmente eu chegava às 11h ou 11h30 dependendo da aula do dia. Achava que sabia de tudo, que o conhecimento que me vendiam por um preço altíssimo era desnecessário frente ao meu dom. E por que continuava? Vontade de aparecer e exibir o diploma na sala da presidência de minha empresa. Nunca sequer vendi uma bala. 

Cheguei, entrei na sala, sentei na última cadeira da segunda fila da esquerda para direita, como fazia todos os dias. Quando se acostuma a uma coisa é difícil mudar. Dá sempre a sensação de que tudo vai passar a dar errado. Era exatamente como acontecia com o tal lugar. Nunca ousei mudar. As horas passavam lentas e eu me agoniava com aquele murmúrio que vinha do professor. Ás vezes eles riam e eu nunca ouvia a piada. Sabia que não haveria graça.

Tinha alguns amigos naquela faculdade. Uns caras que estudavam comigo, uns de outros períodos ou de outros cursos. Não tinha namorada, mas já havia ficado com quase todas as meninas dali. Nunca dei valor a nenhuma delas, porque as achava fáceis demais, interesseiras demais, arrogantes demais. Talvez se espelhassem em mim. Morri sem conhecer o amor.

A aula ia até às 13h e eu esperava o momento de registrar minha presença para ir embora. Naquele dia, quando saí era 12:46. Fui para o restaurante da faculdade, comi o de sempre, um punhado de arroz, macarrão, batata frita, frango e uma coca-cola com gelo e limão. Não foi digno de último almoço, mas estava realmente saboroso. Só faltou a sobremesa. Voltei para casa e dormi a tarde inteira. Poderia ter ido ver o mar, ou mesmo ter aproveitado alguns instantes a mais ao lado de meus amigos. Poderia ter rido a tarde inteira de besteiras que nos fazem momentaneamente felizes. Poderia ter ligado para meus pais e ter dito o quanto os amava e o quanto me fazia falta tê-los por perto. Mas ao invés disso recolhi a minha insignificância numa cama. Dormi pesado, sem sonhos.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A bordo - relatos de uma viajante em início de estrada (Parte II)

Foto: Inês Guimarães

Durante o tempo em que não vivi novas experiências aéreas, muita coisa aconteceu em meu mundo por demais fixado nas superfícies. Dias de angústia por problemas que não sabia sequer identificar. Um pânico que varria as boas sensações e me dava a certeza de morte precoce.

A leitura, por vezes deixada de lado, voltava a ser a companheira que jamais deveria ter abandonado. E em uma dessas incursões pelas palavras alheias, uma reportagem me surgia com uma mensagem difícil de ignorar, impossível de esquecer. A história de dona Ailce, contada de forma magistral por uma jornalista, para mim, até então, pouco conhecida.

De curiosidade à admiração, a história de vida através do texto de Eliane Brum me fazia ver o quanto eu estava perdendo tempo. O quanto deixava o “depois” adiar planos, que se acumulavam dia após dia para um futuro que nem ao menos se sabe se vai acontecer. Considerações até óbvias demais, mas que fazemos questão de ignorar e fingir a plenitude quase impossível de existir.

Entre a minha história e a vida de Ailce, que, em sua aposentaria, finalmente ganharia asas, e terminou descobrindo um câncer que a levaria ao fim, existia um abismo. Eu, ainda com 27 anos, sem filhos, talvez ainda com tempo de descobrir, inventar, arriscar, tentar, errar, se arrepender, percebia que era hora de sair da inércia e enfrentar os medos, por maiores que eles fossem (e insistam em ser até hoje), uma luta diária contra mim, por mim. Li e reli a reportagem, com lágrimas nos olhos, o coração palpitando forte.

Meses antes, uma professora amiga, que havia se mudado para o Rio de Janeiro para o doutorado, convidava para passar um feriado por lá. Nunca havia saído do Nordeste. Tinha medo de distâncias. Imaginar os quilômetros que se desenhavam no mapa imaginário já me desencorajavam. Assim como uma série de outras questões que não convém serem ditas no momento.

No ímpeto, minimizei a página com a reportagem e fui para o site de uma companhia aérea. Salvador-Rio de Janeiro, 30 de maio de 2013. Ninguém tinha ideia do que entrar naquele avião significaria para mim.    

quarta-feira, 7 de maio de 2014

O dia em que o silêncio calou


Era maio de 1998. O dia exato eu não me lembro. Cursava a sexta série, hoje sétimo ano do Ensino Fundamental. Parecia ser um dia comum, mais um dia de escola. Eu ainda era a menina que entrava e saía da sala de aula da mesma maneira: sem dizer muitas palavras. Apenas a observar.

Eu, que já não era muito de falar, me dei aos silêncios por não compreender o porquê de tanta coisa. E no alto dos muros que ia construindo sem perceber, os silêncios sempre diziam mais.

Nesse dia, a coordenação da escola me chamou. Não explicitou o motivo, apenas pediu que eu saísse de sala. Sem entender, acompanhei a professora, que depois me diria que a turma ia fazer um trabalho para o dia das mães. Sem querer me expor, me tornaram vitrine. Colocaram em evidência o que tentavam proteger de mim. Para todo mundo. Uma pedagogia que hoje sei que não funciona.

Eu tinha 12 anos. Era a primeira vez que passaria um dia das mães sem a possibilidade de ter a minha mãe ao meu lado. Isso impediria de homenageá-la? Penso que não. Mas naquele instante calaram qualquer vontade de socializar um sentimento que era só meu e ficou sendo por muito tempo.

Engoli o choro, a garganta arranhando. Fiquei lá esquecida entre conversas que não faziam sentido para mim, entre amenidades e sorrisos que nem sequer me atentei a quem eram dirigidos. Tempos depois, sabe-se lá quanto, fui chamada de volta à sala. E ao entrar todo mundo me olhou, olhares que queriam saber sem perguntar, olhares de compaixão. Eu sentei e me fiz invisível. Meu silêncio, pela primeira vez, calava-se por completo. 

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Das incongruências da vida

Já era um senhor. Ao menos aparentava ser. Caminhando, cabeça baixa encoberta pelo boné que não escondia as marcas do sol. Devia ter 60 anos, se o trabalho diário na terra não o envelheceu precocemente. Procurava um caminho, parecia desnorteado.

- Onde fica a avenida principal? – me interrompeu se apressando em emendar o boa tarde esquecido. Estávamos em Petrolina, algumas dezenas de avenidas principais.

- Aquela que dá pra Lagoa Grande – completou entendendo minha confusão.

- Senhor, é um pouco longe daqui.

- Disseram que eu tinha que andar uns 20 quilômetros. Sabe onde fica a Serra da Santa? Depois de lá um pouco. Preciso avisar a pai a morte de minha “véa” – a cabeça baixou-se ainda mais, pingando lágrimas de um choro desavergonhado.

- 92 anos, foi atropelada – a voz embargada parecia pedir um abraço, queria desabafar a tristeza aprisionada pela falta de recursos. Não podia apenas chorar “sua véa”.

- O dinheiro que tinha paguei um aviso no rádio. Mas pai não ouviu, não apareceu até agora. Então eu disse, fique aí minha irmã, que eu vou caminhando. Devo chegar lá umas oito horas da noite. Tentei uma van pra Lagoa Grande, disse que pagava quando chegasse no projeto, mas não deixaram – baixou novamente a cabeça. Lamentava a falta de confiança.

- Pai tem que saber – chorava, o coração nos olhos vermelhos.


Não sei quem era o senhor, a senhora morta ou ao menos se “pai” soube. Não sei de que localidade do interior de Juazeiro tinha saído apressado para tentar levar uma notícia desagradável. Não sei se ele conseguiu chegar ao projeto de irrigação próximo a Serra da Santa, na BR 428, zona rural de Petrolina. Mas sua tristeza ficou ali parada, mesmo depois de que partiu, tentando achar explicações para tantos descaminhos da vida. 

sexta-feira, 25 de abril de 2014

A caixa (Parte II)

Há vidas que nascem poesia. E aquelas que nem estrofe encontram para se encaixar.

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Andei apressada, a caixa nas mãos latejando os pensamentos. A velha conhecida ruazinha de todo dia não parecia a mesma. Nunca percebera os matos que cresciam desordenadamente em sua encosta ou o fio solto do poste que pendia perigoso. As árvores grandes demais e cheias demais com sua agitação incomum pareciam querer me acompanhar, com toda sua inquietude tempestuosa. As pessoas passavam despercebidas do mundo que se construía ali, no mesmo lugar de sempre.

Mergulhei na vida de outra pessoa. Alguém que esperava uma resposta ou tentava dizer. Palavras que desejamos ouvir, mas nunca são ditas, que nos traem em nossa pressa pelo amanhã que não vem, porque não o compreendemos, porque não permitimos que ele chegue. Ali era silêncio, apesar das inúmeras páginas escritas. Era uma só voz, que terminou esquecida em um meio de rua qualquer.

A caixa trazia dezenas de papeis, ordenados não sei ainda se sob alguma lógica. Fragmentos de uma vida, costurada entre sentimentos que se esparramavam sem pudor sobre as folhas amarrotadas. Quem os teria derramado dessa forma?

“Foi, como costumam dizer, à primeira vista. Olhar compenetrado, ar de quem sabe o suficiente para não esnobar quem lhe cerca. Apenas primeiras impressões. Até então não entendia como coisas assim podiam acontecer. Como podia enxergar o outro sem nunca ao menos tê-lo visto antes. Assim de repente, sem qualquer precedente.

E lá estava, frente a frente a observar. Sorriso de quem se prepara para ir além. Sorriso fácil, sincero. Horas a observar cada trejeito. Pequenos movimentos, palavras. A voz entoando a melodia antiga, tão familiar. Quis estar ali para sempre, ao lado, mãos dadas, braço sobre os ombros cansados, em êxtase. Quis estar ali, mas se percebeu a voltar. A saudade antecipando o tempo.

Tentou compreender o que se passava, compreender os gestos bruscos, a cabeça baixa como a esperar. Mão impaciente a passear de um lado para o outro. Mãos inquietas tentando controlar o nervosismo. Olhava para o lado. Olhar de quem pergunta, de quem diz por que, sem esperar resposta. Fez do momento seu, porque o sabia seu”.

O trecho iniciava com mistério a história que se desenhava bela. Ou triste.  

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Quanto vale seu real?



Quem em sua rotina pagaria R$ 7,30 em uma lata de refrigerante? Ou R$ 12,40 em um pão de hambúrguer (isso mesmo, só o pão, só um pão)? A Páscoa chamava para a comilança de chocolates, cuja caixa, que normalmente é vendida a R$ 6, estava sendo oferecida, na promoção, vale ressaltar, pela bagatela de R$ 21.

Essa é a realidade de quem tem que esperar por voos nos aeroportos brasileiros. Os preços abusivos são comuns na maioria deles. Sem opções, o usuário, que já é lesado de tantas outras formas, é obrigado a escolher entre ficar com fome ou pagar o que lhe é cobrado.

Eu não fiquei com fome.

- Presunto ou pizza? – perguntou a atendente de um café, visivelmente enfadonha com o ambiente, com o trabalho. Dava para ver que ela não queria estar ali.

Eu tinha escolhido um folhado, por R$ 8,40, não maior que a pequena palma de minha mão. Parecia bom pelo vidro que vaporizava no calor-frio do lugar.

- Presunto ou pizza? – repetiu, mecanicamente ante minha indecisão ao imenso leque de opções. A atendente queria ir embora. A agonia dela estava me agoniando.

- Presunto mesmo. Não... pizza.

- É tudo a mesma coisa, mulher. Tudo caro. Eu que não como um treco caro desse, porque eu sei que não vale. Quando eu como aqui é porque me dão de graça – A declaração dela me paralisou, mão estendida esperando o salgado. Ela sorriu de canto de boca como se pensasse “me vinguei por um segundo”.

Ela sabia que não valia, e eu também. Todos nós sabemos, mas continuamos perpetuando o sistema, que parece piorar dia após dia. Ela trabalhando, talvez única fonte de renda, talvez só um complemento ou o dinheiro para pagar a faculdade. Eu consumindo, sem ver opções, sem reclamar.       

Mal peguei o salgado mirrado, mais mirrado do que parecia pelo vidro, e a moça já corria tirando o avental. Eu era sua última cliente. Ela saiu sorrindo, suspirando aliviada. Eu fui ocupar um lugar do café quase lotado, lucrando horrores com as necessidades, às vezes nem tão necessárias, dos que passam por ali.


PS.: Eram curiosas as reações das pessoas ao ver o cardápio. Espanto, indignação e uma longa fila à espera de salgados, pão de queijo e cafezinhos.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

A caixa (Parte I)

A decisão foi encaixotar os sentimentos. Deixá-los empoeirados sob os dias já esquecidos.

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A caixa era pequena para o volume que pretendia carregar. Trazia consigo um laço mal feito e letras rápidas que não queriam dizer. “Para o tempo. Que se encarregue de levá-los até onde der para levá-los”. Ponto e só. Sem nome, endereço, a caixa foi deixada em uma praça movimentada, sem testemunhas nem álibis, quase imperceptível no vai e vem enlouquecido de pessoas.

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Já era quase noite quando avistei o objeto preto e retangular, esquecido em meu caminho diário de volta para casa. A curiosidade não me deixou passar despercebida. Apanhei a pequena caixa, como em um ato-reflexo. As palavras chamavam atenção pela velocidade com que aparentavam ter sido escritas. Não consegui deixa-la para trás. “Quem nunca quis abandonar um pouco de si mesmo e ser descoberto por outra pessoa? Ou ser esquecido para sempre?”.

Eram várias cartas. Sem remetentes ou datas. Talvez nunca enviadas, ou nunca respondidas. Cartas que caminhavam soltas sem as amarras que certamente fizeram delas agora abandonadas. E que se preparavam para renascer em uma nova história.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

A bordo - relatos de uma viajante em início de estrada (Parte I)


Eu morria de medo de avião. Uma sensação que aumentava só de me imaginar dentro de um lugar do qual não poderia sair quando quisesse. Que não poderia “puxar a cordinha” para que parasse no meu ponto de interesse. Aquilo me torturava, mesmo antes de sequer por os pés em um deles. Para mim era uma claustrofobia que não saberia lidar. Nem mesmo sei de onde surgiu esse pânico de lugares fechados. Sei que de uma hora para outra os elevadores tornaram-se os piores lugares.

A primeira vez que viajei de avião foi por conta de uma matéria. A companhia aérea que estreava aeronave convidou o jornal para conhecê-la através de um voo bate-volta Petrolina-Salvador-Petrolina. Eu me escalei, no impulso. Era uma boa oportunidade de driblar o medo, já que não iria poder demonstrá-lo tão intensamente. Foram dias de agonia até a hora da viagem. Pesadelos, suor frio, tinha certeza de que sofreria um infarto, que meu corpo não aguentaria a pressão nem a altitude (sim, eu sabia que o avião oferecia todas as condições para meu corpo não se decompor, que era bem mais fácil sofrer um acidente atravessando a rua na volta pra casa).


Quando me percebi estava sentada na janela, inquieta, olhando a pista de decolagem. E logo via a cidade se apequenando, o rio tornando-se um fio contornando as plantações verdinhas, a caatinga esturricada. Logo ultrapassava as nuvens, com o coração acelerado. Parece bobagem, mas percebi que a claustrofobia era pequena diante da metáfora que se desenhava diante de mim. Meu medo maior era de ganhar asas e ir para além de onde meus pés não conseguiriam me levar. Algo que, no fundo, eu sempre quis, mas não conseguia (consigo) lidar muito bem. Eu, que sempre fui sonhadora ao extremo, temia tirar os pés do chão.  

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Dia que vai


Dia de nuvens acinzentadas, de céu pesado apertando o coração. A chuva que caiu na madrugada ainda resistia empoçada nas ruas, fazendo brotar o mato desordenado, trazendo alívio a alguns.

Quem nunca perdeu para si mesmo? Quem nunca tropeçou em suas próprias fraquezas e hesitou em ir adiante? Ou acreditou demais e de repente percebeu que os maiores obstáculos deveriam ser driblados internamente antes de se aventurar a desafiar o mundo lá fora?

Naquele dia, ela entendeu que no seu mundo era tempestade, contrastando com o calor que mais tarde iluminaria a lua em raios, prenúncio de águas fartas. Naquele dia, ela viu que não adianta olhar de cima, quando não se consegue sequer entender o que está dentro.

O início de semana ainda vive dias anteriores, tenta desentender o que compreendeu equivocadamente. Cada passo o início de um caminho diferente ou rotas em círculo, paisagens que cansam pelo desencanto do que não é mais. 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Voltando a caminhar o caminho...

Ocean Sprout / Vladimir Kush
“Você era muito surrealista”. Era. Sou. A frase foi de um amigo e mexeu comigo, despertou o “surreal” adormecido em meus inúmeros descaminhos que me tornou mais olhos para fora e pé no chão. Como é chato isso. Logo eu, diversos mundos em uma criatura que às vezes não quer se ser, milhões de histórias tecidas imaginariamente, madrugada adentro, a pé pelas ruas. Histórias que nunca conheceram a cor do papel e se perderam ao longo de estradas que não se imagina.

“Ainda sou. Só não pratico”, respondi de imediato. “A gente deixa coisas de lado que não deveria”. Deixa mesmo e realmente não deveria. É difícil admitir que sufocamos certas disposições, seja lá por quais motivos, muitos deles nem tão fortes assim. E que nos acovardamos diante de possibilidades. E nos acomodamos com os degraus já subidos sem ter coragem de olhar para cima e ver que a escada nem bem começou. Vivemos por demais o real e vamos deixando para lá o que é invisível aos olhos, mas perceptível ao inconsciente, não somos os detalhes, esquecemos as sensações. Deixamos de ouvir e lá se vão as abstrações, mãos dadas com as oportunidades ignoradas.  

Felizmente ainda é tempo de dar ouvidos a todo esse surrealismo.