terça-feira, 14 de abril de 2015

O melhor lugar do mundo


Era só entrar pelo caminho de terra, em algum lugar no interior de Remanso, e seguir a estrada marrom de declives e pedregulhos. Era só ir abrindo as cancelas e decidindo instintivamente entre as bifurcações ou se guiar por aquele pé de mandacaru, um entre tantos, mas que se diferenciava sabe-se lá como. Era só passar por aquela árvore retorcida, aquela outra de galhos caídos e por aquela de folhas já secas, que ainda tentava resistir ao implacável sol. E também por um barco, estancado na aridez que se repetia cotidianamente, fazendo de ancoradouro o quintal da casa. Era o caminho das Larges, lugar até então perdido em minhas lembranças infantis.

Foto: Emerson Rocha

Não tinha mais os coqueiros da entrada. Nem o cheiro da água que ia adocicando a estrada. A água sumiu, pra lá depois de onde os olhos já nem alcançam mais e os coqueiros foram embora com ela. Restou o imenso cajueiro abraçando a casa que um dia pareceu enorme. E o senhor que já não se reconhece fora dali, aquele lugar no meio do nada, como dizem tantos. “O que é que eu vou fazer na cidade?”, ouvi meu tio, único irmão vivo de minha avó paterna, perguntar. Ele, 82 anos, morador solitário das Larges. “O que eu vou fazer na cidade?”, a pergunta ecoando, me cobrando explicações.

A vida dele é ali, lugar sem energia elétrica, sem telefone, sem internet. Bodes pastando extensivamente, galinhas de estimação. Raiar e por do sol. Mundo que se agiganta pela simplicidade, pelo passar arrastado do tempo sem relógio. O que fazer fora dali, naquela desordem que confunde, naquela bagunça que sufoca, num vai e vem desenfreado e tantas vezes sem destino? Ali onde bicho, homem, planta, terra, água se entendem e se respeitam, se unem contra as adversidades, se completam num ciclo hoje tão ameaçado.

O calor fazia desenhos no ar, enquanto eu caminhava mato adentro tentando entender. Meu tio, alheio a meus questionamentos, sorria soberano certo de que está no melhor lugar do mundo.  

terça-feira, 7 de abril de 2015

Recomeço

Eu tinha quinze anos quando me senti livre pela primeira vez. Era uma noite de outubro e lembro que fiquei horas no quarto, sozinha, a música alta eternizando o momento. Vinha de dias difíceis e aquilo soou como uma recompensa. Deixei a madrugada chegar lenta, tentando prender aquela sensação em mim, sem saber que seria impossível esquecê-la.

Somos responsáveis por nossas escolhas, pelos caminhos que temos que seguir. Naquele dia eu tinha consciência disso. Como hoje. Anos depois consigo reencontrar aquela mesma garota sonhadora que lutava contra tanto de si mesma para manter-se viva. Que lutava por tanto de si mesma para viver seu próprio caminho.

Coragem nunca foi uma palavra frequente em meu vocabulário. Até perceber que tinha deixado aquela garota morrer justamente por falta dela, a tal coragem. Viver é muito mais que cumprir protocolo, seguir a cartilha que se determinou sabe-se lá como e por quem. Eu não quero cumprir roteiro que nem sequer tive participação. Não vale a pena. 

Já há algum tempo buscava essa coragem para tirar de mim o que tanto me maltratava. Foram dias, como dizia minha avó, de uma "coisa ruim dentro de mim", que não conseguia fazer entender, que médico nenhum conseguia explicar. Coração acelerado, como se quisesse se libertar de mim. "Você está bem, é coisa de sua cabeça". Não, não é. Nada que te faça sentir mal é simplesmente "coisa de sua cabeça". É algo real e deve ser combatido, enfrentado, evitado.

Eu sempre fui muito os outros. O que vão pensar, o que vão dizer, o que vão achar. Mas a verdade é que, nesse período, apesar de todo o apoio e boa vontade de quem esperava aprovação, ninguém conseguiu despertar essa coragem. Ela dependia unicamente de mim, assim como as escolhas, as consequências. A "coisa ruim" era minha e ninguém jamais iria compreendê-la.

Voltei a sentir a garota tentando voltar a respirar. Espero não deixá-la ir embora novamente, que sempre esteja comigo me ensinando a ter coragem e a aprendendo a recomeçar. Não é fácil. Mas pior é acordar com vontade de chorar por ter se anulado diante de suas próprias fraquezas.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Das memórias submersas


“Qual é a graça em ficar olhando para um monte de tijolo velho?” A pergunta saiu de repente de meu irmão mais novo e me assustou. Depois de quase sete anos eu retornava à velha Remanso, desnuda novamente pela seca do rio São Francisco. A baixa do lago de Sobradinho deixava mais uma vez à mostra os restos físicos da cidade alagada após a construção da hidroelétrica.

Havia menos casas em pé e vários sinais da presença humana recente, possibilitada pela seca prolongada. Plantação, gado pastando no que era para ser o curso do lago. Lixo, muito lixo, de garrafas e embalagens de comida a preservativos, espalhados sobre as paredes caídas, por entre os tijolos do que um dia foi um mercado. A rampa do antigo cais, ancoradouro dos vapores que movimentavam a vida local, agora era estacionamento de carros, cujos donos chegavam ali para curtir as barracas de bebidas que acompanharam o retrocesso das águas.

Uma pequena volta pelo lugar e as marcas de trator deixavam evidente que a cidade velha estava morrendo mais uma vez. Como se quisessem juntar todos os cacos em um amontoado de restos e deixar ali para que a água, quando vier de novo, se encarregue de levá-las para sempre. Era claro que a falta de interesse infelizmente não se limitava ao garoto que ignorava minhas explicações.

Fotos: Emerson Rocha
“Quem quer ver isso? Uma escada, grande coisa!”, dizia ele insensível ao se deparar com partes semierguidas de um casarão. Enquanto eu, pele arrepiada, olhos marejados, reconstruía um passado que não vivi, me emocionava com o recontar das histórias repetidas tantas vezes. De longe, observei meu pai a contemplar o rio, debruçado no que foi o ponto principal da cidade, ponto de encontro, de brincadeiras, de comércio, de brigas, de travessuras. Ele parava olhando o passado, sorrindo feito bobo, relembrando como se revivesse.

O sentimento que ficou foi de que o que se passou até que restassem apenas aqueles tijolos velhos vai ficando enterrado, esquecido juntamente com as ruínas. A romaria em busca das lembranças afogadas vai cessando com o tempo. Os filhos da nova Remanso já não parecem se reconhecer nas memórias submersas.