quinta-feira, 29 de maio de 2014

Não precisa dizer nada

Não precisa dizer nada, apenas ouvir. Tem tanta gente disposta a falar, procurando uma brecha no tempo alheio para colocar pra fora sua história. Pode ser apenas mais uma, mas é a vida de alguém. Por mais que não pareça, única.

Ela chegou discreta em meio ao vai e vem de pessoas que se amontoavam na agência bancária, indiferentes a tanto além do passar do tempo. Alta, magra, olhos pesados, mãos querendo falar. Olhou em volta rapidamente, sentou-se ao meu lado, a existência parecendo desafiar a vida.

- Não tem dinheiro nos caixas lá fora. – As mãos falavam esperando atenção. Assenti com a cabeça, tirei o fone do ouvido, o gesto que talvez esperasse.

- Ia tirar um dinheiro porque me enganaram. – Eu apenas ouvia, olhar fixo na transparência da córnea amarelada. Sobre a bolsa a senha que indicava atendimento prioritário.

- Estou com um tumor na cabeça, o médico me disse ontem. Vou ter que operar, mas preciso tomar um remédio antes. Custa setecentos reais. Vim tirar os mil que tenho na poupança.
A senhora, talvez nem tão senhora assim, parecia humilde. Se comportava com uma fragilidade de quem vai quebrar a qualquer momento.

- Tem três anos que eu sinto isso, mas o médico me dizia que era coisa da minha cabeça. Não uma coisa que existia dentro dela, mas uma coisa que ela criava. Fiquei esse tempo todo tomando remédios que acho que nunca deveria ter tomado.

Apesar de toda complacência nas palavras, tinha raiva na voz. E uma sobriedade tão forte, que parecia a impedir de sorrir. Ela não sorriu.

- Esses dias passei mal. Fui levar minha filha na UPA pra fazer um exame e desmaiei lá. Acho que foi porque comi muito pão com queijo cremoso. Por mim eu só comeria pão com queijo cremoso. (pausa longa) Eu disse ao médico que ele ia pagar pelo erro dele, disse que ia processar, porque o tumor tá grande e ele não tinha visto isso. Aí ele me disse pra levar a nota do remédio, acho que vai me reembolsar. Minha mãe me perguntou se eu não tinha medo dele me matar na mesa de cirurgia. E eu respondi, mãe, eu já estou morta.

A campainha soou. P34, era a sua senha. Pegou os mil reais, me mostrou que havia conseguido sacar e foi embora. Pela primeira vez sorriu, de canto, desajeitado como quem não tem costume. Talvez pensando no pão com queijo cremoso, felicidade de instante. Não, ela não estava morta. 

sexta-feira, 23 de maio de 2014

E se fosse seu último dia? (Parte I)

O que você faria se hoje fosse seu último dia de vida? Talvez não fosse a melhor maneira de relacionar-se com o mundo, sabendo que no dia seguinte você não fará mais parte dele, a não ser como pó, lembranças e, em alguns casos, saudades. Eu não sabia que ontem era meu último dia.

Acordei cedo, mais do que normalmente o fazia. Acho que a vida quis dispor a mim mais alguns minutos para que pudesse vê-la, mas não foi isso que eu entendi. Na verdade senti raiva, queria continuar dormindo, ainda me sentia cansado. Mas não consegui mais.

Levantei mal-humorado, fui ao banheiro, lavei o rosto. “Cara feia”, pensei olhando para o espelho. Poderia ter sorrido naquele momento, diante de um pensamento tão tosco e de uma imagem idem. Mas não sorri, do que me arrependo. Foi um sorriso a menos em minha vida. Segui levando no rosto um semblante pseudo-austero, rabugento, quase infeliz. Fui tomar café. Quando se pensa em morte e sabe-se que antes dela haverá um último momento, imagina-se que tudo nesse último momento será da melhor forma possível. Como em uma despedida de solteiro. Comigo não era diferente. Imaginei que minha última refeição matinal seria como naqueles filmes em que se baba frente à tv e que, em certos momentos, você jura poder sentir o gosto das iguarias. Tudo que achei foi um saco de pães dormidos. Poderia ter ido à padaria e comprar pães novos, ou ainda aqueles biscoitos refinados que há tempos paquerava no balcão, mas que, devido ao preço, nunca tive coragem de comprar. Eles pareciam muito bons de fato, mas não tive como constatar isso. Contentei-me com os pães duros e secos. Abri a geladeira e o que vi foi uma caixa de leite aberta, meia dúzia de laranjas já quase apodrecidas e água. Poderia ter feito um suco. Fiquei com preguiça e acabei comendo só aquilo que um dia tinha sido um pão.

Andei pela casa ainda sustentando no rosto a raiva de ter acordado cedo. Sentia-me o próprio Casmurro. Sentei na poltrona, fiquei horas sem fazer nada. Não percebi como estava o céu, se chovia ou se brilhava aquele sol costumeiro. Não senti cheiro algum, não ouvi música, não falei com ninguém. Acho que sequer pensei. Me anulei por um instante, mal sabendo que em poucos instantes estaria anulado para sempre.

Quando resolvi levantar e dar algum rumo àquele bendito dia, o relógio já marcava 10:37. Fui ao banheiro novamente, tomei um banho apressado. Pressa para que? Sentia-me importante quando tomava banho rápido. Parece que todas as pessoas importantes, que têm reuniões de negócios com outras pessoas que carregam maletas e por isso também são importantes, tomam banho rápido para chegar ao destino no horário. Eu não era importante, não tinha uma maleta nem horário marcado para reunião de negócios. Mas imaginava que um dia teria tudo isso e já ia treinando.

Saí do banho, vesti a roupa que vestia quase todos os dias. Uma calça jeans, a camisa amarela com um desenho que nunca entendi o que era na frente. Já estava até meio desbotada. Vi minha camisa nova balançando no cabide. Não cheguei a usá-la. Estava esperando uma ocasião especial, mas acho que esperei demais. Abri a porta resmungando porque ela emitia um ruído insuportável, um rangido que era quase uma canção brega. Poderia ter resolvido com um algodão banhado a óleo de cozinha. Mas acho que preferia perder meu tempo reclamando toda vez que a abrisse.

Andei pelas calçadas empunhando minha maleta imaginária, olhando para as pessoas com meu ar de superioridade que me afastava de uma grande maioria. Me sentia melhor do que os outros, por que haveria de esconder isso? Sou bonito e um dia serei um empresário de sucesso, era o que pensava quando via aquele povo feio que tinha a honra de dividir a calçada comigo. Quanta pretensão tola! Hoje sou pó, lembranças e nem sei se saudades. E eles continuam andando pela calçada, agora honrados sem a minha presença estúpida e prepotente.

O destino era a universidade. Cursava o sétimo período de administração de empresas. Queria fazer economia também, mas o tempo passou e eu não tive mais tempo. As aulas começavam 9h, mas geralmente eu chegava às 11h ou 11h30 dependendo da aula do dia. Achava que sabia de tudo, que o conhecimento que me vendiam por um preço altíssimo era desnecessário frente ao meu dom. E por que continuava? Vontade de aparecer e exibir o diploma na sala da presidência de minha empresa. Nunca sequer vendi uma bala. 

Cheguei, entrei na sala, sentei na última cadeira da segunda fila da esquerda para direita, como fazia todos os dias. Quando se acostuma a uma coisa é difícil mudar. Dá sempre a sensação de que tudo vai passar a dar errado. Era exatamente como acontecia com o tal lugar. Nunca ousei mudar. As horas passavam lentas e eu me agoniava com aquele murmúrio que vinha do professor. Ás vezes eles riam e eu nunca ouvia a piada. Sabia que não haveria graça.

Tinha alguns amigos naquela faculdade. Uns caras que estudavam comigo, uns de outros períodos ou de outros cursos. Não tinha namorada, mas já havia ficado com quase todas as meninas dali. Nunca dei valor a nenhuma delas, porque as achava fáceis demais, interesseiras demais, arrogantes demais. Talvez se espelhassem em mim. Morri sem conhecer o amor.

A aula ia até às 13h e eu esperava o momento de registrar minha presença para ir embora. Naquele dia, quando saí era 12:46. Fui para o restaurante da faculdade, comi o de sempre, um punhado de arroz, macarrão, batata frita, frango e uma coca-cola com gelo e limão. Não foi digno de último almoço, mas estava realmente saboroso. Só faltou a sobremesa. Voltei para casa e dormi a tarde inteira. Poderia ter ido ver o mar, ou mesmo ter aproveitado alguns instantes a mais ao lado de meus amigos. Poderia ter rido a tarde inteira de besteiras que nos fazem momentaneamente felizes. Poderia ter ligado para meus pais e ter dito o quanto os amava e o quanto me fazia falta tê-los por perto. Mas ao invés disso recolhi a minha insignificância numa cama. Dormi pesado, sem sonhos.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A bordo - relatos de uma viajante em início de estrada (Parte II)

Foto: Inês Guimarães

Durante o tempo em que não vivi novas experiências aéreas, muita coisa aconteceu em meu mundo por demais fixado nas superfícies. Dias de angústia por problemas que não sabia sequer identificar. Um pânico que varria as boas sensações e me dava a certeza de morte precoce.

A leitura, por vezes deixada de lado, voltava a ser a companheira que jamais deveria ter abandonado. E em uma dessas incursões pelas palavras alheias, uma reportagem me surgia com uma mensagem difícil de ignorar, impossível de esquecer. A história de dona Ailce, contada de forma magistral por uma jornalista, para mim, até então, pouco conhecida.

De curiosidade à admiração, a história de vida através do texto de Eliane Brum me fazia ver o quanto eu estava perdendo tempo. O quanto deixava o “depois” adiar planos, que se acumulavam dia após dia para um futuro que nem ao menos se sabe se vai acontecer. Considerações até óbvias demais, mas que fazemos questão de ignorar e fingir a plenitude quase impossível de existir.

Entre a minha história e a vida de Ailce, que, em sua aposentaria, finalmente ganharia asas, e terminou descobrindo um câncer que a levaria ao fim, existia um abismo. Eu, ainda com 27 anos, sem filhos, talvez ainda com tempo de descobrir, inventar, arriscar, tentar, errar, se arrepender, percebia que era hora de sair da inércia e enfrentar os medos, por maiores que eles fossem (e insistam em ser até hoje), uma luta diária contra mim, por mim. Li e reli a reportagem, com lágrimas nos olhos, o coração palpitando forte.

Meses antes, uma professora amiga, que havia se mudado para o Rio de Janeiro para o doutorado, convidava para passar um feriado por lá. Nunca havia saído do Nordeste. Tinha medo de distâncias. Imaginar os quilômetros que se desenhavam no mapa imaginário já me desencorajavam. Assim como uma série de outras questões que não convém serem ditas no momento.

No ímpeto, minimizei a página com a reportagem e fui para o site de uma companhia aérea. Salvador-Rio de Janeiro, 30 de maio de 2013. Ninguém tinha ideia do que entrar naquele avião significaria para mim.    

quarta-feira, 7 de maio de 2014

O dia em que o silêncio calou


Era maio de 1998. O dia exato eu não me lembro. Cursava a sexta série, hoje sétimo ano do Ensino Fundamental. Parecia ser um dia comum, mais um dia de escola. Eu ainda era a menina que entrava e saía da sala de aula da mesma maneira: sem dizer muitas palavras. Apenas a observar.

Eu, que já não era muito de falar, me dei aos silêncios por não compreender o porquê de tanta coisa. E no alto dos muros que ia construindo sem perceber, os silêncios sempre diziam mais.

Nesse dia, a coordenação da escola me chamou. Não explicitou o motivo, apenas pediu que eu saísse de sala. Sem entender, acompanhei a professora, que depois me diria que a turma ia fazer um trabalho para o dia das mães. Sem querer me expor, me tornaram vitrine. Colocaram em evidência o que tentavam proteger de mim. Para todo mundo. Uma pedagogia que hoje sei que não funciona.

Eu tinha 12 anos. Era a primeira vez que passaria um dia das mães sem a possibilidade de ter a minha mãe ao meu lado. Isso impediria de homenageá-la? Penso que não. Mas naquele instante calaram qualquer vontade de socializar um sentimento que era só meu e ficou sendo por muito tempo.

Engoli o choro, a garganta arranhando. Fiquei lá esquecida entre conversas que não faziam sentido para mim, entre amenidades e sorrisos que nem sequer me atentei a quem eram dirigidos. Tempos depois, sabe-se lá quanto, fui chamada de volta à sala. E ao entrar todo mundo me olhou, olhares que queriam saber sem perguntar, olhares de compaixão. Eu sentei e me fiz invisível. Meu silêncio, pela primeira vez, calava-se por completo.