sexta-feira, 27 de março de 2020

Tempo, tempo...




Vinte e sete de março de 2020. Estou há onze dias em casa, em distanciamento social. Eu, de tantas exclamações, vou preenchendo meus dias com reticências, pensando mais uma vez na relatividade do tempo, tempo como cura, como remédio, como tormento.

Quem nunca quis voltar ou acelerar o tempo? Congelar um momento, reviver um abraço, escutar novamente algumas palavras ou ver expressões que, inevitavelmente, vão sendo apagadas com o passar dos dias? Ou ainda pedir que os minutos passem apressadamente e levem consigo sensações ruins, situações que não gostamos de passar, lembranças que não gostamos de ter?

Eu hoje amanheci triste. Estou em casa, tenho conforto, trabalho, renda, minha família está bem, meus amigos estão bem. Soa tão egoísta. Mas é uma angústia que nos desafia. Hoje queria poder alterar a velocidade do tempo. Como naqueles dias bons em que ele passou corrido, como que fugisse de nossas mãos, desafiando nossas percepções. Queria poder transpor os minutos através das palavras e dizer: está tudo bem.

Hoje eu só queria ter o tempo nas mãos, poder alterar essa dimensão e a sensação que os segundos arrastados e a repetição dos dias causam. Dia após dia, notícias, dúvidas, perguntas sem respostas e a vontade de que o tempo avance, que acordemos do sonho ruim.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Ida ao supermercado




Vinte de março de 2020. Pelos últimos dois dias protelei, mas saí de casa. Desconfiada, coração angustiado. A sensação era uma só: medo.

No supermercado, controle de entrada de pessoas para evitar aglomerações. Senhoras mascaradas empurravam o carrinho lotado. O olhar era de apreensão, olhar de canto de olho. Os movimentos eram de apreensão. Todos evitando uns aos outros. Apesar de saudável, me senti ameaça. E também ameaçada.

Lavar as mãos, álcool gel, lavar as mãos, álcool gel. Assim saí de um mercado para outro menor, onde encontrei uma pessoa querida, que me disse ainda não ter beijado a filha depois que ela voltou de viagem. Pela primeira vez senti vontade de chorar. Estamos, de fato, em um momento de privações.

Nesses dias tenho lembrado muito de minha mãe. Lá no início da década de 1990, um surto de cólera explodiu no Brasil. Minha mãe, educadora e assistente social, levava informações para crianças em escolas, inclusive na que eu estudava. Vi diversas vezes ela explicando que poderíamos evitar a doença com gestos bem simples, como lavar as mãos e os alimentos que fôssemos consumir.

Nunca esqueci. Impressionada, como sempre fui, fazia várias vezes o teste da pele que ajudava a identificar uma pessoa com cólera. Como o doente perde muita água, a pele fica sem a elasticidade natural. Minha preocupação não tinha qualquer sentido, mas existia pelo medo. Mesmo assim, não me lembro de perceber tanto medo como consigo ver hoje nos olhos das pessoas.

Tenho percebido pessoas abaladas psicologicamente e isso me preocupa bastante, tanto quanto o aumento da pandemia. Estamos vivenciando uma situação em que não sabemos muito bem o que fazer nem tampouco o que será no futuro. Não conseguimos lidar com prazos. Não temos respostas e as certezas são poucas. Eu fiz uma escolha para esses dias em que me isolo socialmente: tentar manter tanto minha saúde física quanto a saúde mental. Não me alienar, mas evitar os excessos. E me colocar à disposição de quem não está conseguindo, seja para conversar sobre o assunto, ou desviar o foco, falar amenidades, sugerir músicas e filmes, o que seja. Sou toda ouvidos.

Vejo muita gente questionando nas redes sociais o que as pessoas mais gostariam de fazer quando terminar o isolamento social. Eu só quero poder sair sem sentir esse medo tão palpável que vivenciei quando fui ao supermercado. Quero poder estar entre pessoas que amo, sem me sentir um perigo.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Normalidade




Dezenove de março de 2020. Há três dias estou em casa. Não que isso seja um sacrifício para mim, mas a situação que nos obriga a ficar isolados socialmente é perturbadora. Não sabemos até quando tudo estará fora da normalidade.

Estou em casa. Durante toda a manhã e início da tarde sozinha, em silêncio. E o silêncio me faz pensar demais, me faz por vezes girar em meu próprio eixo ainda sem compreender muito bem o que está acontecendo e o que está por vir. A preocupação e o medo são inevitáveis. Mas penso ainda na tal normalidade, que também é cruel, que aprisiona, que restringe e segrega, que muitas vezes nem sentido tem. Que talvez precisemos do medo para perceber o quanto ainda somos indivíduo, quando deveríamos ser o todo. O todo é engrenagem, não funciona com peças soltas.

Eis que um vírus bate a nossa porta e grita: ei, olha isso, o que o seu vizinho faz pode te atingir diretamente. Mas sempre não foi assim? Ignoramos o todo. Pensamos no nosso círculo de afinidades e, se está tudo bem por aqui, segue a vida, normalmente.

Ligo a TV, programação normal suspensa, o vírus é o assunto. O moço de paletó diz que depois do fim da pandemia não haverá mais a ordem que existia anteriormente. Em outras palavras, a normalidade pode ganhar outro sentido. E qual o sentido podemos dar? Qual o sentido queremos dar? Sigo pensando em meu autoconfinamento, quebrado vez ou outra pela vibração do celular, que me lembra que nem estou tão sozinha assim, torcendo que consigamos tirar coisas boas do caos, que a desordem reordene um pouco o mundo.