quinta-feira, 2 de abril de 2015

Das memórias submersas


“Qual é a graça em ficar olhando para um monte de tijolo velho?” A pergunta saiu de repente de meu irmão mais novo e me assustou. Depois de quase sete anos eu retornava à velha Remanso, desnuda novamente pela seca do rio São Francisco. A baixa do lago de Sobradinho deixava mais uma vez à mostra os restos físicos da cidade alagada após a construção da hidroelétrica.

Havia menos casas em pé e vários sinais da presença humana recente, possibilitada pela seca prolongada. Plantação, gado pastando no que era para ser o curso do lago. Lixo, muito lixo, de garrafas e embalagens de comida a preservativos, espalhados sobre as paredes caídas, por entre os tijolos do que um dia foi um mercado. A rampa do antigo cais, ancoradouro dos vapores que movimentavam a vida local, agora era estacionamento de carros, cujos donos chegavam ali para curtir as barracas de bebidas que acompanharam o retrocesso das águas.

Uma pequena volta pelo lugar e as marcas de trator deixavam evidente que a cidade velha estava morrendo mais uma vez. Como se quisessem juntar todos os cacos em um amontoado de restos e deixar ali para que a água, quando vier de novo, se encarregue de levá-las para sempre. Era claro que a falta de interesse infelizmente não se limitava ao garoto que ignorava minhas explicações.

Fotos: Emerson Rocha
“Quem quer ver isso? Uma escada, grande coisa!”, dizia ele insensível ao se deparar com partes semierguidas de um casarão. Enquanto eu, pele arrepiada, olhos marejados, reconstruía um passado que não vivi, me emocionava com o recontar das histórias repetidas tantas vezes. De longe, observei meu pai a contemplar o rio, debruçado no que foi o ponto principal da cidade, ponto de encontro, de brincadeiras, de comércio, de brigas, de travessuras. Ele parava olhando o passado, sorrindo feito bobo, relembrando como se revivesse.

O sentimento que ficou foi de que o que se passou até que restassem apenas aqueles tijolos velhos vai ficando enterrado, esquecido juntamente com as ruínas. A romaria em busca das lembranças afogadas vai cessando com o tempo. Os filhos da nova Remanso já não parecem se reconhecer nas memórias submersas.

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